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domingo, 18 de janeiro de 2015

UM CRIADO ESPERTO

Minhas leituras frequentemente descambam para coisas 
inusitadas. E, normalmente, escritos mais antigos, porque 
ostentam a palavra mágica: Grátis! 

Assim, comecei a ler uma coletânea, organizada por José 
António Gomes, de contos tradicionais portugueses, intitulada 
"Fiz das pernas coração", mais voltada para o público infantil, 
porém, como reúne histórias transmitidas oralmente, torna-se 
ponto de interesse geral. 

Os contos tradicionais, geralmente, tentam contar a 'esperteza' 
de um 'heroi', que representa o povo mais pobre, em resposta 
à opressão do poder dominante, nesse conto representada pela 
classe eclesiástica que, em toda a Idade Média, não desgruda 
do poder temporal. 

UM CRIADO ESPERTO

"Havia um sujeito que era padre e que tinha por costume não 
pagar as soldadas do criado, valendo-se de uma esperteza 
no acto do ajuste. Certo dia bateu-lhe à porta um rapaz e 
perguntou-lhe se queria assoldadar um criado. 
- Quanto queres ganhar? 
- Seis moedas por ano. 
- Pago-te cinco réis, mas com a condição de fazeres só o 
que te mando. 
- Estou pelo contrato - respondeu o rapaz. 

No dia seguinte entrou o criado ao serviço do amo, que 
o mandou varrer a rua. 
O rapaz varreu a rua e deixou o estrume em monte. 
- Por que não apanhaste o estrume? 
- Porque o patrão só me mandou varrer a rua. 
Percebeu o amo que tinha ao seu serviço um criado fino. 

Tentou durante muito tempo apanhar o rapaz em alguma 
falta, e não lhe era possível. 
Conferenciou o amo com um compadre muito esperto, 
e este disse-lhe: 
- Diga amanhã ao seu criado que lhe arranje um almoço 
muito leve, e seja qual for o almoço diga-lhe que é pesado. 

E assim sucedeu. O criado pôs-se a pensar na malícia do 
patrão e na maneira como se havia de sair. Depois de 
matutar algum tempo, veio pousar-lhe perto um pintassilgo. 
Apanhou-o vivo, meteu-o numa terrina, tapou-a com a tampa 
e esperou pelo patrão. 
Este entrou e pediu o almoço. 
- Está dentro dessa terrina. 
- Pois tu não sabes que as sopas são alimento muito pesado 
para mim? 
- Veja bem: não são sopas. 
O amo levantou a terrina, e o pintassilgo safou-se, voando. 
- Parece-me que não podia arranjar-lhe um almoço mais 
leve - disse o criado. 
O amo calou-se e foi conferenciar com o compadre. 

- Manda amanhã comprar dez réis de arres e dez réis de ais. 
E assim sucedeu. 
O criado pensou por algum tempo e disse consigo: achei. 
Foi ao campo com um saco, e meteu-lhe dentro grande porção 
de urtigas; depois comprou dez réis de laranjas e meteu dentro 
grandes porções de alfinetes com as pontas para fora, 
colocando as laranjas por baixo das urtigas. 

Trouxe o saco para casa e disse ao amo: 
- Aqui tem no saco o que me mandou comprar. 
O amo abriu o saco e meteu dentro a mão. 
- Arre! - gritou o patrão, sentindo-se picado nas urtigas. 
- Os ais estão mais abaixo. 
- Ai!, Ai! - disse o patrão desesperado, picando-se nos alfinetes. 
- Já vê que cumpri as suas ordens. 

Tornou o amo a casa do compadre. Este já não sabia que 
conselho dar-lhe. Pensou, pensou e disse: 
- Diga-lhe que é costume da casa jejuar-se três dias seguidos. 
É impossível que ele resista a tão grande jejum. E nesta 
hipótese ele safa-se, e o compadre vê-se livre dele. 

O patrão veio para casa e disse: 
- É costume da casa jejuar-se três dias seguidos; 
eu também jejuo. 
- Ora - respondeu o criado - na casa do último patrão jejuei 
seis dias, e não me custou o jejum. 

O criado preveniu-se com uma ceira de figos secos, que 
o amo reservava para o mês de Maio, e comia os figos, 
quando o amo não estava em casa. 

Ao segundo dia ordenou-lhe o amo que aparelhasse duas 
cavalgaduras para ambos irem a uma feira. 
O criado aparelhou-as e meteu no forro da albarda da 
sua cavalgadura uma boa porção de figos. Ora o amo, 
como já se disse, era padre e ia à feira para dizer missa 
numa capela rural. 

Pelo caminho tiveram de atravessar uma grande porção 
de mato, feito de estevas. O amo ia adiante e o criado atrás. 
Este ia comendo o seu figo, à sorrelfa. 
O amo, repentinamente, voltou os olhos para trás e viu o 
criado a comer. 
- Perdeste, pois que não jejuaste - gritou ele. 
- Não perdi, vou entretido em mastigar a carapinha das 
estevas, que refrescam a língua. 
O amo quis seguir o exemplo, mas estas são muito amargas 
e ele pôs-se a saboreá-las com repugnância. 

Chegaram a um outeiro, de onde se avistava ainda a casa 
do padre; e este fez parar a cavalgadura, exclamando: 
- Ai que me esqueceu a caixa das hóstias!... 
- Se quer eu vou lá; ceda-me a sua mula que é mais ligeira 
do que a minha e aqui estou num momento. 
- Pois sim, não te esqueças. Diz à criada que é a caixa maior. 

O criado montou na mula do patrão. 
Chegou a casa e disse à criada: 
- O patrão ordena que me entregue a bolsa maior 
do dinheiro, que tem no baú. 
- A maior não pode ser, porque é onde ele tem o dinheiro 
para pagar a fazenda que comprou. 
- Olhe, ele está além: pergunte-lhe. 
A criada subiu à varanda do prédio e pôs-se a gritar: 
- A maior ou a mais pequena? 
- A maior, a maior - respondeu o padre. 

A criada desceu e entregou a bolsa maior, que o criado 
arrecadou. Depois nunca mais apareceu nem com o dinheiro 
nem com a mula. 
Vingara assim os outros criados que não tinham recebido 
os seus salários." 


(Recolha de Ataíde Oliveira, in Carlos de Oliveira e 
José Gomes Ferreira, Contos Tradicionais Portugueses, 
1º vol., Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1975, pp. 123-127.) 

   *   *   *   

Aí, portanto, não vemos a esperteza corrosiva de uma classe 
política, distorcendo as leis em seu favor, mas apenas respostas 
a canalhices e safadezas, disfarçadas sob algum verniz de 
honestidade ou mesmo de santidade. 

São ações locais e pontuais, sem nenhuma amplitude em seu 
efeito, mas que dão ao povo um sabor de vitória, o que quase 
nunca consegue na vida real. 

Abraço do tesco.  

5 comentários:

Denise Carreiro disse...

História com um final inusitado. Na verdade, sentimos um certo prazer quando vemos um espertinho se dar mal. E gostaríamos que todos os espertinhos do nosso país, que se apropria do dinheiro público, se dessem muito mal. Muita paz!

Shirley Brunelli disse...

Esse criado é um sábio e faço minhas as palavras da Denise.
Um beijo, tesco!

Shirley Brunelli disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
cynthia disse...

gostei!!!!

Anônimo disse...

com certeza quem preza pela justica, gostou do resultado pro patrao "esperto". der broccoli xP