Li recentemente a primeira edição,
organizada em 1984
por Álvaro Salema, da “Antologia do conto
português
contemporâneo”, reunindo autores portugueses e com
uma abrangência de 60 anos. Portanto, para nós hoje,
30
anos depois, alguns dos contos já estão bem distantes.
Não
é o caso de “Balada”, publicado em 1948, no livro
“Serranos”
do escritor e jornalista Mário Braga (1921-),
pois trata uma
temática ainda muito atual: A diferença
de recursos entre
pobres e ricos.
É
um conto dramático, bem contado, e com um elemento
cômico ao
final, o que não lhe altera o caráter dramático,
pelo
contrário, reforça-o.
E
como vocês, normalmente, não estão por aí lendo alguma
antologia
de contos portugueses, e como, dificilmente,irão
se deparar com
este mesmo conto, trago esta boa prosa à
guisa de post. (Guisa é
uma boa, né? A gente muito lê, mas
nunca usa).
BALADA
Mário
Braga
"O
lugar de Sequeiros planta-se no alto da Serra de Queiró,
arriba
de Zebrais.
É
terra de pstores, encravada entre penedos. Os homens
vivem ali,
esquecidos dos outros homens, a cuidar dos
rebanhos e a ver
crescer os pastos. O gado é a vida da gente
de
Sequeiros; a lã, o seu trigo e o seu pão. Só nos escassos
meses
de veraneio a terra fica nua e pode gear. No inverno,
vestida de
branco, ela adormece. Pastores e rebanhos
pernoitam no quente dos
currais, e o dia é da serra, na pista
do
verde. O inverno traz a fome a homens e animais.
Semanas e semanas o
gado no coberto, por culpa dos
nevões, sem poder emigrar para o
vale. Depois, morre a
erva, já pouca, queimada pelo gelo, seca o
leite das fêmeas,
e cresce a fome dos pastores.
Manel
Libório era homem rico, senhor de terras e de muitas
cabeças.
Melo Bichão era pastor velho e pobre, a quem já
ninguém
confiava gado. Manel Libório vivia em casa de bom
aconchego,
rodeado de família. Melo Bichão dormia quase
na rua e tinha
apenas um filho amalucado. Manel Libório e
o seu rebanho
passavam vida farta. Melo Bichão, o filho, e
as suas sete
ovelhas curtiam fome como danados. E ambos
eram criaturas de
Deus, naturais de Sequeiros.
Nesse
ano, o inverno chegou cedo. Duas semanas de nevão
cobriram
a serra de branco e queimaram o pastio. Foi então
que começou a
tragédia do pastor velho e cansado, pai de
um
filho doido e dono de sete ovelhas famintas.
Dias
e noites a fio baliram os animais com fome. Dias e
noites, sem
dormir, escutou Melo Bichão o triste balir das
ovelhas. E sofria
no seu amor por elas:
«Cala-te,
Marrafa, cala-te, Nina...»
Mas o céu não parava de abrir
se em neve, e a neve em frio,
e o frio a picar a carne velha de
Melo Bichão. Choramingava
o filho maluco, baliam os animais
famintos na verde saudade
do pasto. E mais sofria o pastor velho
com a fome das sete
ovelhas.
A
casa grande de Manel Libório quase se encostava à toca
negra de
Melo Bichão. Saía-se a porta, dobrava-se a esquina,
e ficava-se
de caras para o aprisco.
Um
aprisco como um palácio, amplo e coberto, onde as
ovelhas
felizes do vizinho rico baliam alegres da fartura,
que Manel Libório
tinha pasto seu e muitos braços para
lho juntarem em casa.
Definhavam
as ovelhas do pastor pobre: engordavam a
recato as do pastor
rico.
E
mais sofria Melo Bichão: «Cala-te, Negra, cala-te, Nina...»
A
neve não parava no correr das semanas. Gemia o filho
doido de
Melo Bichão. Gemia, gemia. E secava-se o leite das
fêmeas,
morrendo os anhos.
E
uma ideia brotou no cérebro velho do pastor esfaimado.
Todas as
ovelhas eram iguais, feitas por Deus; então, porque
baliam as suas
de fome e as do vizinho de fartura? E não
achava resposta boa
para mistério tamanho. Não pensava
em si, na sua fome; se os
homens eram também iguais, por
os ter feito a todos o mesmo
Deus, não sabia ele, nem tal
coisa o preocupava. Mas as ovelhas,
sim, nasciam iguais da
igualdade de Deus. E, sendo deste modo,
qual o remédio?
Pedir pasto ao Libório? Não! Ele era homem
rico, nada daria.
Mas os animais, sim, decerto não o negariam à
fome dos
irmãos. Pedir a Libório? Isso nunca. E tal ideia não
lhe saía
da cabeça. Ele, Melo Bichão, pastor desde menino,
sabia
falar com o gado.
Entendia-o
e fazia-se entender: por isso iria até ao curral do
vizinho
e contaria às ovelhas gordas a fome das sete ovelhas
magras.
Não lhe negariam o pasto.
A
ideia cresceu no volver dos dias. Por fim, não cabia já na
cabeça
velha de Melo Bichão. Até que, a meio de uma noite
escura,
acordou o filho, enrolou-se na manta, pegou no
cajado, que as
pernas faltavam-lhe, olhou os animais
estendidos no chão, e saiu
para as trevas forradas de
branco. «Cala-te, Boa, cala-te,
Negra...»
Nada
bulia cá fora, quando Melo Bichão começou a andar
com o filho
maluco atrás. Caminhava lentamente,
enterrando os pés na neve
fofa, e o rapaz, que acordara
estremunhado, ia a imprecar contra
a friagem. O pastor
velho pensava sempre:
«Todos
os animais são filhos de Deus, uns com fome, outros
com
fartura, coisa mal feita!»
Dobraram
a casa grande de Libório, e a cerca do aprisco
barrou-lhes
o caminho. Mexiam lá dentro as ovelhas, tiniam
de
manso os chocalhos. A noite porém, estava muda. Mal
transpuseram
a porteira e penetraram no coberto, viram
luzir, no escuro, os
olhos dos animais. Melo Bichão riscou
um fósforo, e a luz,
muito amarela, derramou-se, a tremer,
pela lã farta do gado.
Falava em voz baixa, meigamente:
«Lindas, lindas...»
Depois,
num sussurro, explicou-lhes ao que vinha. Baliram
as ovelhas
ricas e Melo Bichão entendeu a resposta.
Dobrando-se, os ossos
velhos a estalar, encheu de feno,
até а boca, o saco esfiapado.
E o filho maluco imitou-o.
Deixaram
por fim o curral, cada um com sua carga. А frente,
o velho
apoiava-se no cajado; o filho, atrás, arrastava os pés
descalços,
rezando maldições e gemidos.
Quando
Melo Bichão já ia longe do cercado, uma voz fina
rasgou a noite
muda:
– Agarra
qu’é ladrão! Agarra qu’é ladrão!
Rachando
o silêncio de meio a meio, o berro sobressaltou
o pastor
que, ajoujado com o peso do fardo, quis alargar o
passo.
Mas,
alguns metros adiante, a armadilha da neve, ainda a
cair em
flocos, entravou-lhe as pernas frouxas, como se
alguém, oculto
debaixo da terra, lhas estivesse a puxar. Por
mais esforços que
fizesse, retesando as coxas magras, não
conseguiu libertar-se.
E,
de súbito, uma angústia dolorosa fê-lo ajoelhar
lentamente no
frio e branco colchão. Ainda tentou
arrastar-se, abraçado ao saco
de feno, a vida das suas
ovelhas: «Cala-te, Marrafa, cala-te,
Negra... »
Porém, sob a manta espessa da neve, adormeceu para
sempre, já quase à porta de casa.
E
o filho doido do pastor, girando como um pião em volta
do corpo
do pai, continuava a gritar:
– Agarra
qu’é ladrão!
* * *
Aí está! Que causas, ocultas para nós,
geraram tão terríveis
consequências? Sabemos que a Justiça
Divina não falha
nunca. Se falhasse não seria divina. Que
mistérios guarda o
inconsciente de um demente?
Abraço
do tesco.