TRADUTOR

English French German Spain Italian Dutch Russian Portuguese Japanese Korean Arabic Chinese Simplified

domingo, 18 de agosto de 2013

ANALISANDO LETRAS - 1

SONHO DE UM SONHO

Já espinafrei a letra de "Colher de chá", de Tony Osanah, e já 
critiquei a versão de "Smile", feita por Braguinha, agora inicio 
uma pequena série para exaltar as letras primorosas de 
algumas músicas. 

Em 1980, a escola de samba da Vila Isabel apresentou como 
samba-enredo a obra "Sonho de um sonho", composta por 
Martinho da Vila, Rodolfo de Souza e Tião Graúna, trio ao qual 
vários sites acrescentam Aluísio machado e Beto Sem-Braço. 
A letra do samba foi elaborada sobre o poema homônimo de 
Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro "Claro 
Enigma", em 1951. 

O poema não tem estrutura para suportar a melodia de um 
samba, por isso os compositores fizeram a "dissecação" do 
mesmo. Corta daqui, remove dali, enxerta mais esse e, até 
podia-se esperar que um Frankesntein surgisse desse esforço. 
Mas o que apareceu foi uma obra-prima, foi como se tivessem 
lapidado um diamante! O próprio Drummond gostou do 
trabalho. 

A música pode ser ouvida na voz de Martinho da Vila
ou da própria escola de samba Unidos de Vila Isabel.
A letra é esta: 

SONHO DE UM SONHO
(Martinho da Vila / Rodolpho / Graúna)

Sonhei 
Que estava sonhando um sonho sonhado 
O sonho de um sonho 
Magnetizado 
As mentes abertas 
Sem bicos calados 
Juventude alerta 
Os seres alados 
Sonho meu 
Eu sonhava que sonhava 

Sonhei 
Que eu era o rei que reinava como um ser comum 
Era um por milhares, milhares por um 
Como livres raios riscando os espaços 
Transando o universo 
Limpando os mormaços 
Ai de mim 
Ai de mim que mal sonhava 

Na limpidez do espelho só vi coisas limpas 
Como uma lua redonda brilhando nas grimpas 
Um sorriso sem fúria, entre réu e juiz 
A clemência e a ternura por amor da clausura 
A prisão sem tortura, inocência feliz 
Ai meu Deus 
Falso sonho que eu sonhava 
Ai de mim 
Eu sonhei que não sonhava 

* * * 

O que me levou a prestar mais atenção nessa letra, foi a 
interpretação diferente dada por Ithamara Koorax
Ela acrescenta como que uma dimensão mística à coisa, e 
é quase uma declamção que ela faz. 

Mas o que é que tem de notável nessa letra? 
Bem, toda ela é boa, mas eu destaco dois aspectos sutis (ou 
nem tanto). Primeiro é quando se diz que: 
"sonhei que era um rei que reinava como um ser comum".  

Reparem que o poema é de 1951, Getúlio Vargas estava na 
presidência do país, mas já não era ditador. Drummond, que 
viveu toda a ditadura Vargas, certamente se referia àquele 
período de arbitrariedades. 

Porém, quando o poema foi transformado em samba-enredo, 
em 1980, o país estava em plena ditadura, diluída, mas ainda 
ditadura. E os generais, como todos os ditadores, não são 
"seres comuns", pelo menos, não se consideram assim. 
Naturalmente são seres 'divinos' ou, no mínimo, designados 
por Deus para "guiar os pobres mortais" como nós. 

Um outro verso marcante é "A prisão sem tortura", heresia 
para muitos dos militares na época. Digo 'muitos' porque 
não eram todos: Em 1972 eu estava prestando o serviço militar, 
e distinguia perfeitamente os oficiais que não compartilhavam 
o mesmo pensamento da cúpula diretiva do país. 

Por fim, é de se notar a desilusão do sonhador, exressada 
pelo poeta, no verso final: "Eu sonhei que não sonhava!". 
É uma sensação cruel, sem dúvida nenhuma, nos sonhos 
relacionados ao período do sono comum, a impressão que 
se tem de estar vivendo a realidade material é muito forte. 
Então, ao acordar e verificar que os "fatos" do sonho eram 
tão somente sonhos, o sonhador tem vontade de chorar. 
Ai, meu Deus! 

Eis aí um exemplo de letra bem feita, com uma mensagem 
bela. É uma preciosidade. 

Abraço do tesco. 

5 comentários:

Anônimo disse...

pois, gostei da poesia e de seus comentários, mas não me lembro da musica.
hiscla

Anônimo disse...

Caro Tesco, a interpretação dela é maravilhosa!
Sem demérito para gênero, é muito mais do que um samba-de-enredo.
Um pequeno adendo: Drummond foi Chefe de Gabinete do Ministério da Educação e Cultura (do Ministro Gustavo Capanema) na Ditadura Vargas, outros intelectuais brilhantes (Villa-Lobos, por exemplo) também ocuparam cargos importantes no MEC, na Era Vargas.
Em 1980 já houvera a anistia e a "dita dura estava amolecendo".
Muito boas suas observações.
Manoel Carlos

tesco disse...

Complemento importante do Manoel Carlos. Obrigado, Mano.

Anônimo disse...

Tesco, lembro muito da música. Maravilha.

Denise Carreiro disse...

Muito interessante essa sua análise. Devo confessar que não consigo prestar atenção às letras das músicas, então, foi muito legal tê-la explicada.
Quanto ao seu comentário, que sua missão seria de modificar-se, penso que muitos de nós temos essa missão e que de fato não é fácil. Como bem diz vc, é uma grande luta interior. Muita paz!